quarta-feira, 3 de abril de 2013


Karina Ishimori apresenta texto sobre a dança e seus significados simbólicos na cultura japonesa, no qual somos levados a movimentar nossas almas.






SOLOS DE UMA BAILARINA:

A dança como instrumento de individuação da alma imigrante japonesa
Karina Midori Ishimori
[1]

 




Introdução:
A imigração de japoneses para o Brasil teve seu início em 1908 e pode-se dizer que o encontro entre duas culturas tão díspares, a ocidental e a oriental, promoveu vivências peculiares não só para os primeiros imigrantes, mas também para seus descendentes. Neste sentido, este estudo tem como objetivo compreender um aspecto dessa vivência nikkei[2] e como este pôde ser vivido, expressado e elaborado através da dança. Isto é, pretende-se adentrar na subjetividade de uma dançarina nipo-brasileira, elucidando como se dá o processo criativo da dança e como este pode estar intrinsecamente relacionado com o processo de individuação.
 

A alma do imigrante japonês e seus descendentes

Ishimori (2005) conta que os primeiros imigrantes japoneses aportaram no Brasil com um sonho: enriquecer o mais rápido possível como trabalhadores nas fazendas de café e retornar ao país de origem o mais breve possível. Mas, Logo que chegaram em terras brasileiras, a fantasia de enriquecimento rápido já deu seus sinais contrários, pois muitos fazendeiros mantinham seus trabalhadores em regime servil. Dessa maneira, assim que puderam, esses imigrantes começaram a formar núcleos cooperativos, arrendando ou comprando terras baratas.

Nesses núcleos cooperativos começaram a formar um pequeno Japão em solo brasileiro, mantiveram a língua, os costumes, pensamentos e os mesmos ideais com que deixaram a terra natal. Eram como “pequenas cidades japonesas” que constituíam uma sociedade à margem da brasileira com modos e costumes alheios que as tornavam fechadas.

Vero (2003) pontua que é comum que estrangeiros recém chegados a uma cultura estranha busquem seus iguais como referência. Pois, identificar-se com seu semelhante é manter-se quem se é. Porém, ao fazerem isso fecham-se em si mesmos numa espécie de gaiola, formando uma “cola psíquica”. Isso acontece porque temem perder suas identidades se tiverem contato com a cultura brasileira.

O contato com o estrangeiro (o diferente, o novo, o desconhecido) nos remete ao nosso próprio estrangeiro interno, ou seja, nos remete a partes de nossa psique até então desconhecidas e que não reconhecemos como sendo nossas. Se esse material psíquico puder ser elaborado integrando-se à consciência, vai significar uma abertura às possibilidades de crescimento. No entanto, fazer isso aos imigrantes japoneses era tão ameaçador que fecharam literalmente as suas fronteiras.

Essa dinâmica, que apesar de tudo era de sobrevivência, deixou um legado aos seus filhos: a tarefa de fincar definitivamente as raízes no Brasil e a elaboração de todo material psíquico encapsulado ficou a cargo dessa próxima geração, os nisseis[3].

 

“(...) aquilo que é negado por uma geração, acaba depositado sobre o inconsciente de seus filhos que tem a incumbência de vivê-lo e elaborá-lo (...) aquilo que os pais não puderam elaborar, ou seja, aquilo que neles era estrangeiro e não puderam reconhecer e incorporar, ficou projetado para ser vivido pela próxima geração (...)” (Vero, 2003, p.14)

 

Então, os nisseis nasceram em solo brasileiro e com isso o direito da nacionalidade, são brasileiros. Mas, Vero (2003) acredita que essa geração se vê declaradamente com uma parte estrangeira que está à flor da pele, pois não há como escondê-la. A “estrangeiridade” do nikkei se expressa em seus costumes, pensamentos, comportamentos e o próprio corpo (“olhos puxados”) que o denuncia. Dessa forma, são brasileiros por direito, mas se sentem estrangeiros.

Ser brasileiro num “corpo estrangeiro” gera uma tensão na construção de suas identidades. “Sou japonês ou sou brasileiro?” Vero (2003) explica que possuir uma identidade nacional engloba ter um nome, uma língua materna e sentimento de pertencimento que servem como base para as pessoas. Pode-se dizer que o legado da segunda geração foi a tentativa de construir uma identidade, mas a autora pontua que fizeram de maneira fixada e pouco maleável – tendem a se considerar ou inteiramente japonês ou inteiramente brasileiro. Nesse sentido, ao se escolher uma identidade em detrimento da outra, ainda permanece um lado estrangeiro que não faz parte da psique.

Portanto, os nisseis também deixam uma herança para os seus descendentes. Para a terceira geração, os sansseis, fica a tarefa de fazer a síntese dessa “contradição”: brasilidade X japonicidade. Okano (2009) relata que os nikkeis se situam num espaço Ma – um espaço em suspensão ou intervalar entre as duas culturas. Declara que essa experiência pode se constituir um problema para alguns, mas que para ela pode ser um lugar de privilégio para o indivíduo. Pois, ele pode, ao invés de ter de enfrentar a exclusão (ou um ou outro), construindo assim uma referência polarizada, pode conviver com a adição (um e outro) e abarcar com uma multiplicidade de visões que o espaço Ma pode abarcar.

Dessa forma, o segredo aqui seria o que Okano (2009) propõe, pois esta contradição pode abrir a possibilidade de se construir referências polivalentes ao invés do nikkei ter de enfrentar a exclusão.

 

A dança e o diálogo com o criativo

Almeida (2009) acredita que a dança é uma produção espontânea do ser humano e que todas as vezes em que o homem necessitou entrar em contato com forças que o transcendiam, a dança se fez presente nos rituais: de fertilidade, funerária, casamento, etc. Tendo assim, um caráter universal no qual o homem pode manifestar sentimentos profundos de si mesmo e do mundo que o cerca.

A autora pontua que o bailarino quando dança é guiado não pelo holofote do ego, mas por forças inconscientes. É através do mergulho nesse “reino do silêncio e de forças amedrontadoras” que o criativo surge e, nesse sentido, não só a criação do movimento, mas também a possibilidade de uma nova consciência em um novo significado de vida para quem dança. Sendo assim, pensa-se a dança como um ato libertador.

Interessante pontuar que alguns autores como Almeida (2009), Katz (2006) e Chevalier e Gheerbrant (2009), com palavras diferentes falam de uma mesma característica da dança: ela tem o poder de unir os opostos. Pois, o dançarino tem oportunidade de vivenciar de maneira UNA o que geralmente experiencia de forma PARCIAL ou POLARIZADA. Assim, fugacidade/eternidade, espaço/tempo, corpo/alma, espiritual/mental, criador/criação, visível/invisível se fundem num mesmo instante fazendo com que o dançarino tenha a experiência de ser uno, inteiro e pleno. Ele vivencia a “totalidade”. 

Almeida (2009) complementa que a vivência da totalidade é experienciada de tal modo que há uma sensação de pertencimento do indivíduo com relação à humanidade ao mesmo tempo em que se percebe um ser único. Aqui se alcança um nível tão profundo de compreensão que as palavras não exprimem o vivido, pois se chegou num plano inconsciente que não é mais pessoal, mas da humanidade inteira.

Jaffé (1982) alerta ao fato de que a possibilidade de viver essa totalidade não é realizada de maneira direta com o inconsciente, mas indiretamente através de símbolos. Nesse processo, o resultado final de uma obra se torna um símbolo da vivência de totalidade experimentada. Há uma fusão de elementos provindos do inconsciente, mais propriamente do inconsciente coletivo com o individual, único do criador.

Vê-se, portanto, que o criativo ou a inspiração nasce da porosidade do artista com o inconsciente coletivo e desse modo, não é arbitrário. O artista se surpreende com o que sai dele porque é inundado de pensamentos e imagens que jamais pensou em criar e que seu ego não tem mais controle. Assim, percebe que está submetido à sua obra. Contudo, depois da inspiração inicial, sua obra também pode sofrer influências individuais.

 

Alguns conceitos teóricos da Psicologia Analítica

Jung (2006) enxerga o homem não apenas sob o holofote do eu, pois considera que a razão - característica essencial desse componente psicológico - nos impõe limites bastante estreitos do que seria nossa vida em sua totalidade. Para ele, a nossa vida ultrapassa, e muito, as fronteiras da consciência e, sem que saibamos, a vida inconsciente nos acompanha pela nossa existência.

Whitmont (1994) explica que a vontade, a razão, dentro da estrutura psíquica, são representadas pelo ego, que é apenas o sujeito da consciência. Já o Self, representa a totalidade da psique e, por isso, inclui não só o ego, mas também todo o inconsciente. Acrescenta que o Self transcende a nossa compreensão e poderia ser chamado de “Deus dentro de nós”. Isso significa que o Self é a meta de nosso destino e possui sua própria finalidade que é se realizar. Quando o bailarino dança, ele tem a possibilidade de entrar em contato com essa totalidade psíquica e experienciar o uno.

Para tanto, o ego precisa se subordinar ao Self, e esta é uma tarefa árdua já que, por vezes, as demandas desse “Deus interior” contradizem as suas vontades. Mas, se o ego puder dialogar com essa totalidade psíquica, o caminho para o desenvolvimento individual parece certeiro porque promove a ampliação da consciência, enfim, crescimento psicológico.

A esse processo Jung (1987) denominou de individuação que significa tornar-se único, em nossa singularidade mais íntima, que é nos tornarmos o nosso próprio si-mesmo (Self). Hillman (1997) descreve a individuação como um chamado de urgência que nos guia para um caminho específico. Sendo que nesse instante, o indivíduo “sabe o que deve fazer” e sabe quem é.

Então, Guerra (2006) declara que o artista “sabe o que fazer”, entende estar submetido à obra que é maior que ele e, naquele instante, a sua dança é o próprio Self a se realizar.  “Seu consciente está perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou em criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona”. (Jung, 1922, apud Guerra, 2006, p.47)

O contato com o Self não é realizado de modo direto, mas mediado pelos símbolos. Guerra (2006) declara que tudo o que chega a nós tem um caráter simbólico porque é carregado de significados e, assim, estrutura e desenvolve a consciência do homem por ampliar a sua visão de mundo. O símbolo pode surgir no bailarino através de imagens internas enquanto se movimenta, nas imagens de um sonho ou até mesmo de um fato.

Outro fator importante a discorrer sobre o símbolo é que este possui, ao mesmo tempo, aspectos individuais e coletivos. E nesse sentido, o produto artístico pode estar inserido num ritual que envolva todo um povo, gerando significados de uma vivência grupal.

 

“(...) a criatividade do artista está inserida tanto no Self Cultural como no processo de desenvolvimento de sua personalidade, pois indivíduo e cultura são polaridades inseparáveis. Alguns artistas, inclusive, escancaram seu processo pessoal para a Cultura, expondo em sua Arte vivências extremamente íntimas, mas que, ao se fundirem às experiências profundamente humanas, transcendem a individualidade e mostram seu caráter universal. (...)” (Guerra, 2006, p.52)

 

Para se aprofundar um pouco mais nesses conceitos teóricos, é importante lembrar que Jung distinguiu o inconsciente entre inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. Jung (1987) elucida que o inconsciente pessoal é um estrato de reminiscências estritamente pessoais, da própria vivência de cada indivíduo, assim, contém lembranças reprimidas, evocações dolorosas e percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência.

Já, o inconsciente coletivo, é uma camada mais profunda do inconsciente e nele não repousam mais as reminiscências pessoais. O inconsciente coletivo é universal, seus conteúdos podem ser encontrados em toda parte, onde “jazem adormecidas” as imagens humanas universais e originárias. Essas imagens ou motivos foram denominados por Jung, arquétipos.

Jung (1987) acrescenta que os arquétipos, essas imagens das recordações do inconsciente coletivo são imagens não preenchidas porque não foram pessoalmente vividas pelo indivíduo, mas estão à disposição de qualquer um e só requer algumas condições para vir à tona. É curioso constatar que Jung acredita que “(...) Os maiores e melhores pensamentos da humanidade são moldados sobre imagens primordiais (...)” (Jung, 1987, p.61) Assim, podemos verificar também que os artistas dialogam com os arquétipos, com essas imagens primordiais, pois é dessa instância que suas grandes obras surgem.

 

Solos de uma bailarina: Susana Yamauchi

Susana é nissei, nascida em 1957, bailarina de formação clássica e moderna, conhecida nacional e internacionalmente. Como coreógrafa, já assinou trabalhos para importantes companhias de dança, mas seus solos são considerados as obras de sua maior expressão individual em que explora a sua ligação com a cultura japonesa. Dessa forma, foram analisados os três solos já realizados por ela: “À flor da pele” (1992), “A face oculta” (1996) e “Wabisabi” (2008). Essa trilogia mostra a sua vivência de ser uma nipo-brasileira, assim como também revela seu processo de individuação a partir da dança.

 

“À flor da pele”

Susana, em 1992, decidiu dançar para si, queria construir algo que tivesse significado para ela. Em sua juventude, fala ter vivido conflitos quanto sua condição nikkei, oscilou uma fase de negação quanto a sua porção oriental, pois queria ser igual aos brasileiros. Mas, logo em seguida, aos 20 anos, diz ter vindo o “oposto”, passou a valorizar os costumes japoneses e foi estudar a língua japonesa, pois queria saber sobre suas origens.

Susana também relata um detalhe interessante e que resume a sua indagação da época. Declara que só é chamada pelo nome em português, por pessoas distantes, já sua família e amigos íntimos a chamam de Suê, seu nome em japonês. Dessa maneira, pontua através do próprio nome seu conflito, ela era Susana (brasileira) ou Suê (japonesa)? Conta que este solo foi um depoimento cênico do que vivia naquele momento, que era um resgate de sua origem através do Japão tradicional e o questionamento de sua identidade. Essas questões eram sentidas como que exalando e em erupção, por isso “À flor da pele”.

Para tanto, foi buscar como inspiração uma figura marcante da sua juventude, o “Lobo solitário”, um personagem de revista em quadrinhos, que era um ex-samurai  em busca de vingança. O que lhe interessava nesse personagem era que ele fazia as próprias leis e que estas tinham relação com a honra e respeito. Ishimori (2005) conta que a herança deixada por esses guerreiros aos japoneses foi o enaltecimento e cumprimento dos princípios de lealdade, honra, coragem e autodisciplina.  Aspectos estes que remontam à cultura tradicional japonesa a qual Susana buscava. Esse personagem simbolizava, então, o resgate à cultura de origem.

Outra característica importante da figura do Lobo solitário para Susana era o fato dele ser  só, pois não se associava a outros samurais e nem buscava as regras coletivas. Nesse sentido, ela também se sentia solitária, pois não se identificava com os brasileiros e nem com os nikkeis. Sentia-se diferente deles e que, sendo assim, tinha de trilhar o seu próprio caminho. Dessa maneira, Susana foi à procura de Si-mesma. Pode-se dizer que é nesse instante em que percebe que é ela própria que tem de percorrer o seu caminho que se encontra a possibilidade da superação da dicotomia brasilidade X japonicidade.

Susana acrescenta que compreendeu esse personagem muito tempo depois, pois na adolescência não percebia o quanto o “Lobo solitário” a representava na sua própria busca de identidade e resgate da cultura tradicional japonesa. Assim, Susana viveu este símbolo sem reconhecê-lo por vários anos e parece que ele só foi significado após Susana dançar o “À flor da pele”.

 

 

“A face oculta”

Susana comenta que foi depois de dançar o “À Flor da Pele” que lhe veio a idéia de ir ao Japão. Porém, o Japão imaginado e dançado no primeiro solo não foi o encontrado na realidade. É desse choque que nasce “A face oculta”.

Nessa viagem, Susana entendeu que o que imaginava ser a sua identidade japonesa não era mais a do Japão atual! Percebeu o quanto era estrangeira lá também. Essa viagem, sentida como um choque, destruiu a imagem que tinha dos japoneses e a que tinha construído para si. Foi à partir dessa experiência que passou a compreender que a sua identidade não se encontrava no passado (no Japão tradicional), mas no presente (estrangeira no Brasil e no Japão) e que ela era sim, a somatória do passado com o que se vive hoje. Diz que o espetáculo “A face oculta”, realizado em 1996, aborda essa necessidade de elaboração.

Diante a este fato, parece que Susana foi lançada a questionar a sua própria face oculta, o estrangeiro dentro dela. Nesse solo, Susana diz ter usado muitas máscaras, num jogo em que tirava uma e revelava ainda outra. Pontua que essa dinâmica tinha relação com a identidade que buscava, que era a somatória de informações de cultura, uma identidade que ela denomina como híbrida.

Colocar e tirar máscaras é um gesto simbólico que Susana fala que todos nós fazemos no convívio com os outros, que não há máscara falsa ou verdadeira, mas que evidencia uma parte do que se é. A máscara, então, mostra um aspecto da identidade que, para ela, seria a sobreposição de várias outras.

Nesse instante, Susana descobre que ela própria é a sobreposição das “máscaras” ocidentais e orientais. Assim, não precisa escolher entre uma ou outra, mas se percebe como sendo a “miscelânea” dessas culturas. Aqui se marca, finalmente, a superação da vivência polarizada oriente X ocidente. Susana teve que viajar até o Japão, desconstruir tudo o que havia imaginado ser o Japão tradicional e que a representava, para agora, conseguir perceber que as faces ocultas que tanto a incomodaram, podiam ser vividas conjuntamente. O termo face oculta sugere o estrangeiro no sentido que Vero (2003) pontua. Daquele “não eu” mas que “habita em mim” e que Susana, nesse instante parece ter conseguido integrar como fazendo parte de sua consciência.

 
“Wabisabi”
Wabisabi” é apresentado em 2008, wabi significa a beleza da simplicidade e da harmonia, e sabi a imperfeição e impermanência. Dessa maneira wabisabi revela a beleza da imperfeição e do inacabado, porque não existe a uniformidade e nem a perfeição. É um conceito da filosofia Zen.
Relata que o choque vivido no Japão foi de repulsa por não ter encontrado o Japão imaginado, mas sentia que a sua ligação com essa cultura era maior que esse desencontro. Conclui que é na filosofia Zen que encontrou suas respostas.  
                                 
                                                                            VÍDEO "WABISABI" youtube (clique)

 
“Wabisabi” representa a transformação de Susana, pois ele mudou não só a sua visão de mundo, mas a que ela tinha dela própria. Diz que não é que ficou mais “espiritualizada”, mas que olhou para dentro de si e percebeu que nada é permanente e nem há perfeição na vida. E que é na constatação desses aspectos que se encontra a beleza da vida, que se pode compreender a sofisticação de um simples ato e encontrar arte no dia-a-dia.  

Com “Wabisabi” entendeu ainda que a beleza/ feiúra, eternidade/finitude, uniformidade/desigualdade, perfeição/imperfeição como contradições que formam uma totalidade. Isto é, cada elemento só existe na presença do outro e que a partir disso, seu olhar para com o mundo e consigo mesma se transformou.

Dessa maneira, Susana deixou para trás os conflitos em relação a sua identidade e saltou para um olhar mais abrangente e abstrato, que para ela, traz um sentido de vida. Em “Wabisabi”, Susana dança essa conquista, a da compreensão do mundo e de um sentimento amplo de se saber quem é, desvencilhada dos antagonismos.

                                    

Considerações Finais

As imagens para o processo de criação das obras de Susana tem grande valor simbólico. Primeiro, o Lobo solitário, o ex-samurai errante que simbolizava todos os princípios e valores da cultura tradicional do Japão que Susana identificava como sendo seus. Depois, as imagens no novo Japão, que a fizeram desconstruir essa identidade japonesa fazendo-a encontrar um novo lugar para si. Nesse processo para a conquista do novo, percebeu através das máscaras a reconciliação entre o mundo ocidental e oriental. E a partir de então, conquistou “Wabisabi”, conceito da tradição Zen que agora explica não só a sua visão de mundo como a si mesma. Todo esse processo mostra o trabalho de uma pessoa por anos à fio. O primeiro solo de Susana aconteceu em 1992 e o último em 2008, isto é, um trabalho de pelo menos 16 anos de elaboração psíquica e muita dança.

Susana é exemplo do artista que se deixa abrir-se para as portas do inconsciente pessoal, coletivo e dos arquétipos. Essas imagens carregadas de simbolismo expressam seu Self que tenta a sua realização. Fazendo isso tem a possibilidade de vivenciar a totalidade e daí trazer algo novo para a sua consciência, ampliando-a. A cada ensaio e a cada vez que dança, Susana tem possibilidade de se transformar, como que se cada peça entre milhares do quebra-cabeça de sua psique fosse se encaixando, “devagarinho” e no seu tempo. Porque esse processo não respeita a ordem cronológica do nosso tempo egóico, do nosso desejo e querer. Ele respeita o tempo do Self, o qual não possuímos controle algum.

Esses três solos nos conduzem para o processo de individuação de sua dançarina. Mostram com clareza suas indagações, incertezas, angústias e para onde o Self aponta. Nesse sentido, Susana foi corajosa e conseguiu suportar toda a tensão que essa vivência contém. Assim, conseguiu também transferir o controle que antes era do ego para a instância do Self. Um projeto de difícil conquista porque o ego quase nunca quer deixar de possuir o controle de nossas vidas. Consentir ao Self realizar as nossas vidas é poder acreditar em algo maior que a gente mesmo, e isso, muitas vezes nos gera um medo imenso fazendo que nem todas as pessoas  busquem essa jornada.

Susana, ouvindo seu “Deus interior”, escolheu não viver uma ou outra polaridade, a ocidental ou oriental. Ela superou essa dicotomia, encontrando um terceiro caminho que foi o da reconciliação, considera a sua identidade como a “sobreposição” dessas culturas. E mais, dessa conquista, ampliou seu campo de consciência através dos conceitos do Zen para além de uma nova forma de se enxergar, mas também uma nova forma de lidar com o mundo.

 

 

Bibliografia

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[1] Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP, especialista em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua como psicoterapeuta junguiana e professora universitária. e-mail: kaishimori@uol.com.br

 


[2] Palavra que designa todos os indivíduos com origem japonesa.


[3] Denominação para os filhos dos imigrantes japoneses. Eles são considerados a segunda geração de japoneses no Brasil.